Não há cinema no Brasil sem o Negro. Essa afirmação decorre do fato de que todas as riquezas constituídas neste país só foram (e continuam sendo) possíveis devido à presença das pessoas negras, afro-diaspóricas, que vivem do lado de cá do Atlântico desde o início da colonização.
Costumes, cheiros, ritmos e temperos; modos de se vestir, crenças, saberes e tecnologias ancestrais. Todas essas variáveis, que moldam nossos modos de vida em comum enquanto brasileiros, são atravessadas pela negritude.
A noção de uma ‘identidade’ cultural brasileira deve, portanto, considerar as narrativas negras como parte fundamental dessa definição, ainda que controversa. Afinal, a ‘sociedade brasileira’ idealizada pelo colonizador sempre foi composta por uma minoria não negra, em detrimento da maioria da população, que, desde a fundação da colônia, é negra. É o que Abdias Nascimento nos revela em sua aclamada obra O Genocídio do Negro Brasileiro – Processo de um Racismo Mascarado.
Recriemos, então, as narrativas ocultadas pelo trágico e cruel cortejo genocida que marca a vida desta jovem nação brasileira, e façamos isso por meio de histórias contadas sob novas perspectivas. Ao nos voltarmos para o universo das expressões artísticas, em suas variadas linguagens e suportes, que caracterizam essa dita ‘identidade’ nacional, encontraremos a presença negra em todas elas.
É sobre essa presença, mais especificamente no fazer cinema, que desejo falar. Para que estejamos alinhados nesta breve reflexão, escureço o meu discurso, partilhando algumas considerações sob a ótica de um homem negro que atua em produções audiovisuais majoritariamente protagonizadas por pessoas não negras. Insurjo-me deste lugar, ainda pouco comum aos corpos negros, para falar de sujeitos.
Embora eu tenha afirmado no início do texto que não há cinema no Brasil sem o Negro, preciso aprofundar questões que, à primeira vista, podem parecer contraditórias, mas que, ao final, espero estarem bem escurecidas.
Não é novidade que a produção cinematográfica requer o uso de equipamentos sofisticados e de alto valor, o que faz com que essa forma de expressão artística seja, na maioria dos casos, acessível apenas a quem pode arcar com os investimentos necessários para esse ofício criativo. Esse é o primeiro fator que explica o porquê de inúmeras pesquisas apontarem diretores homens, não negros, liderando o ranking da produção de obras que se destacam no mercado nacional.
A histórica desigualdade material entre pessoas negras e não negras não é novidade para nós, brasileiros. Portanto, não nos deixemos enganar pelo mito da “democracia racial” ao analisarmos o curso da nossa história sem traçarmos um paralelo entre passado, presente e a desigualdade de oportunidades oferecidas às pessoas negras e não negras em razão dessa desproporcionalidade.
Outro fator que caracteriza a centralidade do diretor, homem, não negro, como protagonista no cinema nacional é a sua visão hegemônica. Com uma lente limitada, ele só consegue filmar aquilo que sua estreita percepção de Brasil lhe permite, resultando em obras que abordam o Negro apenas como objeto. Objeto de narrativa ficcional, documental, experimental. Objeto de definição estética. Objeto de ativismo. Objeto de exotismo. Objeto. Sempre objeto, quase nunca sujeito.
Pela constante afirmação dos realizadores negros enquanto protagonistas e narradores de suas próprias histórias, apoiemos suas iniciativas e oportunizemos, cada vez mais, o seu acesso integral à produção audiovisual brasileira de forma inventiva e insubmissa. Que possamos sempre avançar em direção à tão sonhada igualdade material, a fim de lhes conferir o devido lugar de sujeito no curso da história do cinema nacional.
Texto de Eddie Mansan